31.7.06

Ícaro e os sonhos



Engraçado como a Vida se conduz..

De forma imprevisível, quase que assustadora, o fluxo destas águas modifica o seu traçado e abre novos caminhos de forma implacável.

Assim tem sido o meu trajeto... A inconstância na qual sempre fui mergulhado assemelha-se muito com o oceano. Nunca parado, nunca estável, nunca satisfeito... Sempre em movimento, sempre indo e vindo.

Mas a vida, de uns tempos pra cá, tem se tornando um mar revolto. Muitas mudanças, muitas oportunidades, muitos embates... Sentidos novos, prazeres renovados, almas reencontradas... E assim o oceano se agita, se rebela, se movimenta num coordenado bailar a fim de lapidar a pedra bruta que se encontra fixa em sua margem!

Tal como a pedra, muito aprendi enquanto estive preso à beira do mar... Não pode-se negar que foi forçoso, mas houve exercício. Foi dorido e permaneceram as cicatrizes que simbolizam o aprendizado.

Quando ainda era ensinado filosofia nas escolas, em uma das aulas lembro-me perfeitamente de um conto grego, onde Ícaro, com o intuito de fugir do labirinto em que se encontrava, junto com o seu pai projetou asas tão perfeitas quanto a de passáros e assim se pôs a voar... Aquilo ficou fixado em minhas memórias e a pergunta: Pode um homem voar??? não se fez calar.

Hoje acredito que podemos voar... Não de forma literal, material, objetiva... Mas sim através dos sonhos, por meio da subjetividade inerente ao humano, utilizando como artifício a vontade de ser livre, leve, solto e talvez louco... Aquela pedra presa ao mar, após aprender o bailar vai-e-vem do oceano, resolveu que não queria mais ser pedra.. E a Vida, milagrosa e boa entendedora do que vem a ser um 'contentamento descontente', concedeu a oportunidade à grande rocha e esta se tornou um pequeno pássaro.

Assim como Ícaro, agora posso sobrepor o labirinto. O brilho do Sol é tentador, mas não percorrei o mesmo trajeto do pobre rapaz. Minha cera é frágil, e para que ela não derreta, alçarei inicialmente pequeninos saltos e curtas distâncias...

'Hilário, lembra-te de Ícaro e Dédalo. Recorda-te das penas... Não deseje mais o labirinto e cuida da tua cera! Homem, acredite! Voe, tu podes...'

A certeza continua e a lembrança da história da infância permanece intacta e sobreposta aos receios adultos. A memória manda e eu, inconscientemente, obedeço...




26.7.06

O João



Do último feito à prossiga fenda

João, que do vulgo era o eterno,

Debruçou-se drasticamente

No mar de perdição.

Por bom e sublime efeito

Da última reserva do louro confim

Ao cêntuplo consagrado

Fiz uma cantiga

Pra acordar João.


João! Ô João. Mísero trombar, desse que te levou por filhos e filhos, um susto, um semblante, um volver. Corre que é fatal! É tarde, medidas incabíveis, acinte invólucro, safra minando-te, não faz, não faz, levaras tempo a fio percorrendo estradas, pra que? Por que? Para que pudesses mergulhar num último suspiro? Era fardo, sei, mas tu eras serenar, quantas e quantas, lembrais, e vejo, lembra-te? Fizera-te, construira-te: o caro, o amado, o querido, o João! Amiga das horas, a súplica é o meu cantar. Traga-o, sabes que sim, não deixe, não deixe...e assim com braços abertos: no joio do trigo, na fuga do bravo, na flecha do inimigo, chegando-te sempre no ímpeto ato. Agora trombetas anunciam o doce perfumar, a segunda, a terceira, a quarta...ficando aos longos dias a beleza da consideração: salvado, protegido e amparado. E assim fique, pois te fitando, entremeei-te, um seguro poeta, um cavaleiro da luz, ombreio: sempre alado, o amigo, meu João. Ô João! Malogro, sim, por minha conta, na clausura da dor, pois tu não te quiseras partir-te, sei, sabe. Segure com teu cento minha mão, sempre avante, reich do mar!

X

Condolências foi o que sobraram.

Resta-me seguir conforme a máxima autoridade da vida.

Não me cerra nada, neste presente, nem abotoaduras, nem rochedos.

Alui-se o bem preciso:

Um amigo, um companheiro e as várias jornadas;

O retrato estancado é a salva deificada que tu foste amado e referido.

X

E esta cantiga foi feita pelo grande camarada Gabriel Amorim, uma alma sensível, pura e acima de tudo, amiga! Apesar dos contratempos impostos pela Vida; apesar dos desinteresses esporádicos motivados pelo cansaço; apesar dos seus apelos, tenha a certeza que ando com a sua foto na carteira e com o seu carinho no coração! Obrigado, grande vivente!